A 'Cadela da Noite' - Nightbitch (2024) e a visceralidade da mulher-mãe

Canina (Nightbitch, 2024, escrito e dirigido por Marielle Heller, baseado no romance de 2021 de Rachel Yoder), foi o filme mais visceral que assisti nos últimos tempos. Uma obra que explora a maternidade e a essência feminina para além do básico. Já assisti diversos filmes que abordam o tema, mas esse enredo fantástico, que beira a loucura expressa tudo que nós mulheres no puerpério vivemos e sentimos.

Amy Adams, encarna lindamente a personagem principal, que é referida apenas como “mãe”, o que me leva a pensar em quantas vezes nós, mulheres, nos sentimos apenas mães. Uma fábrica de colo, leite, sangue e suor. Cuidadoras em tempo integral dos filhos e maridos, sem tempo para um banho, comer sem interrupção, muito menos para ler um livro. Ou o quanto nos sentimos burras e desinteressantes durante toda a gestação e tudo, absolutamente tudo, gira em torno de roupas, fraldas e o desenvolvimento daquele micro ser humano dentro de nós.

Uma das falas que descrevem esse processo é quando ela desabafa com o marido, referido como “pai”, o quão difícil era o cuidado, porque “era como se ela estivesse cuidando de um suicida”, e sabemos que à todo o instante, acidentes acontecem com crianças pequenas. Ela interpreta muito bem a sensação de esgotamento, frustração e o modus operandi materno, sempre em alerta aos perigos.

A sua reclusão em relação as outras mães por se achar péssima, sem paciência e sem ludicidade, ilustram as vidas de muitas mulheres. Nos sentimos solitárias, buscamos um ideal de criação que não existe, vendido por grandes industrias, influenciadores, médicos e terapeutas. Nos esquecemos dos nossos instintos, e não estou falando sobre instinto materno, mas de instinto humano, de seguirmos nossa natureza única e individual. Esquecemos que não nascemos com fórmulas ou manuais, porém desejamos incansavelmente de um roteiro para nossas vidas. Roteiros esses que são uma falsa ideia de segurança e estabilidade irreal.

Amy, como mãe, nos mostra através do olhar de si própria, em uma metamorfose animalesca, como o resgate da nossa essência é fundamental ao final do puerpério e como o resgate da mulher selvagem em si é um processo doloroso e cheio de rupturas. A mãe, se separa do pai nessa busca por si mesma, se permite ter seu tempo sozinha e anseia por ele. Faz uso desse espaço-tempo para criar e romper a crisálida que a prendia. E, com isso, seu tempo com o filho muda, ele se torna agradável, ela brinca, ri com o caos, descobre formas de viver diferentes, que funcionam, que saem da caixa e a deixam feliz. Ela se torna uma mãe melhor quando dedica um tempo à si, para a mulher-mãe.

Ao se dar conta de que “somos deusas, nós criamos ossos, pele e órgãos dentro de nós” ela, a mãe, se liberta da ideia de inferioridade feminina e materna que tinha sobre si e sobre as outras. Ela encontra, ao se abrir, um grupo de mulheres que são seu suporte nessa busca animalesca pela liberdade e o reencontro com faces perdidas.

Para além da alegoria mulher-fera, o filme aborda a relação do casal, mãe-pai e suas demandas de cuidado injustas com o filho. A falta de comprometimento de um pai que trabalha fora e não consegue ser funcional dentro da própria casa, que culpa e responsabiliza a parceira por esquecer de comprar o leite ou de deixar de ser a pessoa com a qual ele se casou.

Eu poderia passar horas escrevendo sobre o filme, unindo arquétipos e leituras como ‘Mulheres que correm com os lobos’, de Clarissa Pinkola Estés, ‘Mulheres, mitos e deusas’ da Martha Robles ou ‘As deusas e a mulher’ de Jean Shinoda Bolen, mas vou me limitar a dizer: assistam. Mulheres, mães ou não, homens, pais ou não, pessoas, apenas assistam. Para entender mães, porque, afinal, viemos de uma mãe, nos relacionamos com mães, e o mundo só é mundo por causa de mães. Insisto, assistam.

Finalizo dizendo que, assistiria mil vezes, porque Canina não me arrancou lágrimas, Canina me abraçou e disse “tudo bem, eu estou aqui, todas nós passamos por isso e tu não está só, eu sinto a tua dor”. Canina é um grito que vem das entranhas e ecoa no espaço, é sobre parir a si mesma, é sobre reencontrar-se.

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